Na terça-feira, 18 de novembro de 2025, a Câmara dos Deputados aprovou, por ampla maioria, uma emenda que retira o direito de voto de pessoas em prisão provisória no Brasil. Com 349 votos a favor, 40 contra e uma abstenção, a medida — apresentada como destaque ao Projeto de Lei Antifacção — foi aprovada durante sessão plenária em Brasília. O autor da proposta, o deputado Marcel Van Hattem (Novo-RS), defendeu a mudança como um passo necessário para combater a influência das facções criminosas nas eleições. Mas o que parecia uma medida técnica esconde uma reviravolta histórica: pela primeira vez desde 2010, o Brasil vai negar o voto a quem ainda não foi condenado. E isso afeta cerca de 187 mil pessoas.
Uma mudança que desafia a Constituição
Até agora, a Constituição brasileira garantia que apenas quem tinha sentença definitiva perdia o direito de votar. A presunção de inocência — pilar do Estado Democrático de Direito — protegia os presos provisórios, mesmo que estivessem detidos por crimes graves. Eram pessoas que ainda não tinham sido julgadas, mas que, por lei, podiam participar do processo democrático. A emenda aprovada muda isso. Agora, basta estar preso preventivamente para ser excluído do eleitorado. Não importa se a prisão foi por tráfico, roubo ou até por um crime que depois pode ser considerado inocente. A decisão é automática.Isso não é apenas uma alteração legal. É uma ruptura com décadas de jurisprudência. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por unanimidade, que negar o voto a presos provisórios violaria o artigo 15, inciso III, da Constituição. Agora, o Legislativo, com apoio de quase 90% dos deputados, ignorou esse entendimento. O argumento de Van Hattem? Que facções criminosas usam os presídios como centros de comando eleitoral. Mas não há dados concretos que comprovem isso. O que existe são relatos isolados — e uma pressão política crescente por respostas rápidas à violência.
O pacote anti-crime que vai muito além do voto
A emenda sobre o voto não veio sozinha. Ela foi aprovada dentro do Projeto de Lei Antifacção, um pacote de 127 medidas que transforma a legislação penal brasileira. Entre as novidades: a criação do crime de "domínio social estruturado" — um termo jurídico novo que abrange ações de milícias, facções e grupos paramilitares que controlam territórios, intimidam autoridades e atacam serviços públicos. A pena? De 20 a 40 anos de prisão, podendo aumentar em até dois terços se houver violência ou uso de armas de fogo.Outra mudança radical: líderes de organizações criminosas serão obrigados a cumprir pena em presídios federais de segurança máxima, sem direito a anistia, indulto ou liberdade condicional. Também é crime ajudar esses grupos — mesmo que seja só dar um abrigo ou compartilhar uma mensagem nas redes. A pena? De 4 a 8 anos. E empresas que recebem bens roubados perdem o CNPJ por seis meses na primeira infração. Na segunda, dentro de cinco anos, são banidas para sempre.
Além disso, o projeto facilita a cooperação com a Interpol e permite a apreensão antecipada de bens mesmo antes da condenação. Isso pode parecer eficaz — mas especialistas alertam: é um risco enorme para a segurança jurídica. Quando o Estado pode tirar propriedades de alguém só por suspeita, quem garante que isso não será usado contra opositores políticos ou minorias?
Reações e o caminho que falta
A oposição, liderada pelo Partido dos Trabalhadores, Movimento Democrático Brasileiro e Partido Socialismo e Liberdade, criticou a medida com veemência. Embora não tenham divulgado discursos completos, fontes internas confirmaram que o grupo considera a emenda "um retrocesso autoritário". "Você não combate crime tirando direitos de quem ainda não foi julgado. Você combate crime com polícia eficiente, justiça ágil e investimento em educação", disse um assessor do PT ao CartaCapital.Do outro lado, o bloco de centro-direita — incluindo Partido Liberal, Republicanos e Progressistas — celebrou. Van Hattem recebeu apoio de 28 das 32 bancadas estaduais. A lógica é simples: o eleitor quer segurança. E políticos, mesmo que não acreditem plenamente na proposta, não querem ser vistos como "macios" com a criminalidade.
O que vem a seguir?
Agora, o projeto vai para o Senado Federal. Por lei, o plenário tem 60 dias úteis para analisar a proposta — mas o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), ainda não definiu uma pauta. Se aprovado lá, o texto vai para a Presidência da República, onde Luiz Inácio Lula da Silva terá 15 dias para sancionar ou vetar. Um veto seria histórico. Seria a primeira vez em 30 anos que o presidente rejeita uma medida tão ampla aprovada pelo Congresso — e isso poderia gerar uma crise política.Enquanto isso, os presos provisórios seguem presos. E, por enquanto, ainda podem votar. Mas só até que o Senado decida. E se a lei for aprovada, o Tribunal Superior Eleitoral terá que atualizar 187 mil registros de eleitor — algo que, segundo fontes da Justiça Eleitoral, pode levar mais de um ano. Enquanto isso, muitos vão perder o voto sem nem saber por quê.
Por que isso importa para você?
Essa mudança não afeta só quem está na cadeia. Ela afeta a democracia. Quando você nega o direito de votar a alguém por suspeita — e não por condenação — você está dizendo que a justiça pode ser substituída pela opinião pública. E isso é perigoso. Porque, em tempos de polarização, quem é considerado "inimigo do povo" hoje pode ser inocente amanhã. E se a regra vale para presos provisórios, por que não valeria para manifestantes? Para jornalistas? Para ativistas?Além disso, o Brasil já tem uma das maiores populações prisionais do mundo. Quase 80% dos detentos estão em prisão provisória — muitos por falta de defesa adequada, por atrasos judiciais, por não terem condições de pagar fiança. Tirar o voto deles não vai reduzir a criminalidade. Mas pode reduzir ainda mais a participação de comunidades já marginalizadas na vida política. E isso, sim, alimenta a violência.
Frequently Asked Questions
Quem perde o direito de voto com essa nova lei?
Qualquer pessoa em prisão provisória, independentemente do tipo de crime ou da fase do processo judicial. Isso inclui pessoas presas por suspeita de tráfico, roubo, homicídio ou até crimes menores, desde que ainda não tenham sido condenadas. Apenas quem tem sentença transitada em julgado já perdia o voto — agora, até quem ainda aguarda julgamento será excluído.
Essa medida é constitucional?
Ainda não se sabe. O Supremo Tribunal Federal já decidiu, em 2010, que a presunção de inocência protege o voto dos presos provisórios. Agora, o Congresso desafiou essa interpretação. Se a lei for sancionada, é quase certo que haverá uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no STF. O tribunal pode derrubar a medida — ou, pior, legitimar uma ruptura na democracia.
Quantas pessoas serão afetadas?
Cerca de 187 mil pessoas, segundo estimativas do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. A maioria está presa por crimes relacionados ao tráfico de drogas, e quase 60% nunca chegou a ser julgada. Muitos estão presos por meses ou anos por não terem condições de pagar fiança ou por falta de defensores públicos.
O que acontece se o Senado aprovar e o presidente vetar?
O veto será analisado pelo Congresso em sessão conjunta. Se dois terços dos deputados e senadores votarem para derrubar o veto, a lei entra em vigor. Se não, ela morre. Historicamente, vetos presidenciais a projetos de grande apoio parlamentar raramente são mantidos — mas, neste caso, Lula pode ver o veto como um gesto simbólico contra o autoritarismo, mesmo que politicamente custoso.
Essa lei vai reduzir a violência?
Não há evidências de que tirar o voto de presos provisórios reduza crimes. Estudos do IPEA mostram que a criminalidade cai com investimento em policiamento inteligente, justiça rápida e programas de reinserção — não com restrições eleitorais. O que essa lei faz é punir symbolicamente os mais pobres, enquanto os verdadeiros líderes das facções — muitos deles com mandatos ou influência política — permanecem impunes.
O que os eleitores podem fazer agora?
Se a lei for aprovada no Senado, os cidadãos podem pressionar o STF por uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental. Também podem apoiar organizações como o Instituto Sou da Paz ou o Conectas Direitos Humanos, que já anunciaram que vão recorrer judicialmente. E, claro, votar nas eleições de 2026 para escolher representantes que defendam direitos fundamentais — e não apenas respostas fáceis.