Flamengo pede à ONU reconhecimento como "nação simbólico-cultural" e vira meme nas redes

Postado por Simão Rodrigues em setembro 10, 2025 AT 18:46 0 Comentários

Flamengo pede à ONU reconhecimento como "nação simbólico-cultural" e vira meme nas redes

O que está em jogo

Um clube de futebol quer ser reconhecido pela ONU como uma “nação simbólico-cultural”. Não é figura de linguagem: o Flamengo lançou, nesta terça, 9 de setembro de 2025, uma campanha pedindo que as Nações Unidas reconheçam oficialmente o que o clube chama de “Nação Rubro-Negra” — uma comunidade transnacional ligada por identidade cultural, histórias, canções, heróis e rituais de arquibancada.

O anúncio veio com Zico como embaixador da ideia e um vídeo institucional exibido na FlaTV. A peça também convoca torcedores a assinarem uma petição em um site do clube. A mensagem central: a força do Flamengo vai além do esporte e já funciona como uma cultura compartilhada, com milhões de pessoas no Brasil e fora dele. Adriano Imperador aparece no material para reforçar a memória afetiva e o poder de ídolos na construção dessa identidade.

O clube sustenta a campanha em números de massa. Zico afirma que, se a torcida fosse um país, teria a 36ª maior população do mundo — a diretoria fala em mais de 45 milhões de rubro-negros. Pesquisas recentes de mercado, como levantamentos do Datafolha e de consultorias do setor esportivo, costumam colocar o Flamengo no topo do ranking de torcidas no Brasil. A campanha empacota esses dados como argumento de que a “Nação” já existe no plano cultural, falta o selo simbólico internacional.

A ideia ganhou a internet em minutos. Nas redes, a proposta virou combustível para piadas, montagens e comparações improváveis: passaporte rubro-negro, ministério das Relações Exteriores da Gávea, hino nacional no ritmo de arquibancada. Rivais tiraram sarro, rubro-negros abraçaram o deboche e ajudaram a campanha a circular mais longe. O humor serviu como propaganda gratuita, o tipo de efeito colateral que times e marcas perseguem quando apostam alto em narrativas.

Por trás do discurso, há uma arquitetura de marketing. A criação é da Artplan, com a Quintal responsável pela estratégia de conteúdo. O fio condutor é antigo no Flamengo — a expressão “Nação” é usada há décadas —, mas aqui aparece turbinado: transforma orgulho de torcida em uma tese pública, com ambição global e uma meta clara de mobilização. O clube, que vive fase de internacionalização da marca, tenta ampliar lastro emocional, gerar dados de contato via petição e medir a capacidade de engajamento num ano de calendário carregado.

O que é possível no sistema da ONU

Antes de qualquer paixão, vale a pergunta direta: dá para a ONU “reconhecer” um clube como nação, ainda que simbólica? Na prática, a ONU não tem um mecanismo para isso. O sistema trabalha com Estados soberanos e organizações internacionais. A Carta da ONU, no Artigo 4º, trata de admissão de países como membros. Há ainda o status de observador (casos como Santa Sé e Estado da Palestina) e assentos para organismos multilaterais. Clubes esportivos não se encaixam nessas categorias.

Existem, porém, outras portas no guarda-chuva das Nações Unidas que lidam com cultura. A UNESCO, agência da ONU, mantém listas de Patrimônio Cultural Imaterial — foi lá que expressões brasileiras como a roda de capoeira e o frevo ganharam reconhecimento internacional. Esse tipo de chancela não transforma ninguém em “nação”, mas legitima práticas culturais e as protege como bens da humanidade. Outro caminho possível, em termos de visibilidade, é a participação de organizações da sociedade civil com status consultivo no Conselho Econômico e Social (ECOSOC). Novamente, não é reconhecimento de “nação”, e sim um vínculo técnico para debate de políticas.

Há ainda as efemérides da ONU: dias, anos e décadas temáticas. Elas destacam causas (saúde, educação, direitos humanos) e colocam temas no radar de governos e mídia. Clubes de futebol, como entidades privadas, não costumam ser protagonistas nesses processos, mas podem colaborar em campanhas, metas de desenvolvimento e projetos de impacto social. Em todos os casos, a régua é a mesma: a ONU não concede cidadania, passaporte ou estatuto nacional a comunidades simbólicas.

Nesse contexto, o pedido do Flamengo tem forte componente performático. É uma forma de dizer algo grande, mesmo sabendo que a resposta formal dificilmente virá como o enunciado sugere. Se vier um retorno, deve apontar para o ecossistema cultural (UNESCO) ou para cooperação em agendas sociais. No limite, o objetivo pode ser bem mais mensurável do que parece: ampliar base de dados, converter fãs ocasionais em sócios, aquecer a vitrine para patrocinadores e testar o alcance internacional da marca.

Mercadologicamente, a jogada conversa com tendências globais. Clubes de peso há anos vendem a ideia de comunidade transnacional. O Barcelona ficou famoso pelo “Més que un club”, o Celtic alimenta uma diáspora ativa, o Boca Juniors transformou sua “La 12” em símbolo pop. Ainda assim, não se viu alguém subir a aposta até o patamar ONU. O Flamengo quer ocupar esse espaço narrativo: o de quem redefine o escopo do que um time pode ser no século 21.

O uso de termos como “nação” sempre rende controvérsia. Há quem veja exagero e confusão com identidades nacionais de fato; há quem enxergue aí apenas a forma como torcidas organizam pertencimento, algo tão antigo quanto o futebol moderno. Na prática, “nação” virou rótulo afetivo para comunidades gigantes, que compartilham ritos, músicas, códigos e heróis. O torcedor entende: é uma licença poética para falar de tamanho e de laço emocional.

O discurso de Zico segue essa trilha. Ele apresentou a Nação Rubro-Negra como um povo espalhado pelo planeta, não limitado por fronteiras geográficas, unido por símbolos, tradições e memória coletiva. O depoimento tem efeito duplo. Primeiro, faz o elo entre passado e presente, porque vem de quem viveu a era de ouro do clube. Segundo, empresta legitimidade moral a uma proposta que, de outra maneira, poderia soar apenas como peça publicitária.

Se o pedido à ONU é improvável, onde está o ganho concreto? Na métrica. Uma petição digital bem-sucedida entrega contatos, localidade, idade, preferências, horários de atividade — um mapa vivo de engajamento. Com isso, é possível segmentar campanhas, ajustar ofertas de produtos oficiais, calibrar planos de sócio-torcedor, abrir caminho em mercados externos e provar valor para patrocinadores. Para marcas que investem milhões, ver uma campanha virar assunto orgânico é um sinal forte de retorno indireto.

Tem também o contexto de 2025. O Flamengo chega aos 130 anos de fundação e faz tempo que age como empresa global: canal próprio de mídia, turnês, licenciamentos, experiências de estádio, expansão digital. A campanha na ONU encaixa como narrativa de aniversário — algo grandioso o bastante para marcar a temporada e, de quebra, reforçar a ideia de que a Gávea pensa grande.

No curto prazo, o roteiro deve seguir três passos: manter a chama nas redes com novos conteúdos; divulgar marcos da petição (número de assinaturas, países onde a ação chegou); e abrir frentes institucionais no meio cultural, onde a chance de alguma chancela é real. Um capítulo possível é o diálogo com o IPHAN e com a própria UNESCO para reconhecer práticas associadas à torcida — cânticos, instrumentos e coreografias — como patrimônios imateriais, caminho que outras manifestações brasileiras já trilharam.

Do lado de fora da bolha rubro-negra, a reação é aquele misto típico de futebol e internet: ironia, provocação e, às vezes, admiração pelo tamanho do passo. Para adversários, a campanha vira munição. Para quem trabalha com comunicação, é um estudo de caso sobre como tensionar limites sem romper com o senso comum. Para a ONU, caso o tema chegue de fato a alguma mesa, será mais um lembrete de que o futebol move afetos, economia e — neste caso — metáforas institucionais.

Há uma leitura cética que não pode ser ignorada: transformar clube em “nação” pode embaralhar fronteiras discursivas com nacionalismos, num mundo já inflamado por identidades em conflito. A campanha, até agora, tenta contornar esse risco ao falar em cultura, laço emocional e diversidade geográfica. O teste será manter o tom celebratório sem trombar com sensibilidades sociais e políticas.

Para o torcedor comum, a pergunta é mais simples: isso muda o quê no dia a dia? Hoje, nada prático. Não há passaporte, não há embaixada, não há direito internacional em jogo. O que há é símbolo — e símbolo importa quando se fala de pertencimento. Nas arquibancadas, esse pertencimento se mede em vozes e bandeiras. Nas planilhas, em assinaturas e em cliques. É nesse cruzamento que a campanha quer pontuar.

Seja como for, o Flamengo colocou o tema no noticiário e empurrou a conversa para além do campo. Mostrou que clubes podem usar a máquina da cultura pop para falar de si mesmos em escala global — e que a internet ainda recompensa, com alcance, ideias que desafiam o óbvio. O próximo capítulo depende menos da ONU e mais de quantas pessoas, movidas por amor, humor ou curiosidade, topam assinar a história.

Por ora, a bola está no campo da repercussão. A gestão rubro-negra chama o gesto de “ousadia” e “irreverência”, palavras que estão no DNA do clube há décadas. O bordão final do anúncio resume o espírito da coisa: do protocolo internacional à arquibancada, a Nação já se vê gigante. Se virá carta timbrada da ONU, aí é outra conversa.

Resumo prático — o que a ONU efetivamente faz que dialoga com cultura e sociedade civil:

  • Admite Estados soberanos como membros (não é o caso de clubes).
  • Concede status de observador a alguns Estados e organizações internacionais.
  • Reconhece patrimônios culturais imateriais pela UNESCO (foco em práticas culturais, não em instituições esportivas).
  • Confere status consultivo no ECOSOC a ONGs para participação técnica em debates.
  • Institui dias e anos temáticos para mobilização global em torno de causas.

Resumo prático — o que o Flamengo quer colher com a campanha:

  • Reforçar a identidade de “Nação” e o sentimento de pertencimento.
  • Medir e ampliar engajamento (assinaturas, alcance internacional, dados).
  • Atrair e reter patrocinadores com prova de vitalidade da marca.
  • Abrir caminho para reconhecimentos culturais reais em órgãos competentes.

No fim, fica a cena que explica tudo: um clube com história e massa decide estender a mão para além das quatro linhas, coloca seu mito maior no centro do palco e convida milhões a carimbar um passaporte imaginário. O resto — as piadas, os números, as possíveis portas culturais — virá no compasso da própria Nação que ele diz representar.