A Justiça de São Paulo recusou, em caráter de urgência, o pedido da ex-detenta Sandra Regina Ruiz Gomes, conhecida como Sandrão, para retirar a série 'Tremembé' do catálogo da Amazon Prime Video. A decisão, proferida pela juíza Ana Cláudia de Moura Querido, da 1ª Vara Cível da Comarca de Mogi das Cruzes, foi tomada na sexta-feira, 5 de abril — e não foi baseada na veracidade da narrativa, mas no direito à liberdade de expressão. Sandrão queria bloquear a exibição da série e pediu R$ 3 milhões em indenização por danos morais, alegando que a produção distorceu sua participação no sequestro e assassinato de um adolescente em 2003, transformando-a de partícipe secundária — como foi reconhecida pela Justiça criminal — em mandante e executora do crime. O que ela não contava é que a arte, mesmo quando inspirada em fatos reais, tem espaço protegido na Constituição — e o tribunal entendeu que o pedido de suspensão imediata seria um corte de liberdade artística antes mesmo de avaliar o mérito.
Por que a série mexeu tanto com Sandrão?
Sandrão, que vive em Mogi das Cruzes desde 2015 sob regime semiaberto, diz que a representação da personagem inspirada nela — interpretada por Letícia Rodrigues — reacendeu o ódio da comunidade local. Ela afirma que, após o lançamento da série, passou a ser reconhecida nas ruas, sofreu ameaças e até teve sua casa alvo de vandalismo. "Fui julgada de novo, sem processo, sem defesa, só com um roteiro", disse ela em entrevista à imprensa. Mas o que a torna ainda mais vulnerável é o contexto: ela foi companheira íntima de Suzane von Richthofen dentro do presídio, e a série, embora se concentre no crime Richthofen de 2002, a envolve diretamente como figura secundária, mas visualmente marcante. A produção, que já foi renovada para uma segunda temporada, conta com Marina Ruy Barbosa como protagonista e é produzida pela Medialand Produção e Comunicação Ltda..A justificativa da juíza: liberdade de expressão não é absoluta — mas é prioritária
A juíza Ana Cláudia de Moura Querido foi clara: "O caso dos autos esbarra no direito de liberdade de expressão que, embora assegurado pela Constituição Federal, não possui caráter absoluto, devendo ser exercido em harmonia com outros direitos fundamentais." Ela não disse que Sandrão não tem razão — disse que a urgência não se justifica. A decisão não absolve a série de eventuais exageros. Pelo contrário: o processo continua. Mas, para suspender uma obra que já está disponível para milhões de espectadores, é preciso mais do que dor emocional. É preciso prova concreta de violação de direitos, e isso ainda não foi apresentado. A magistrada ainda destacou que a realização de uma audiência de conciliação antes da citação formal dos réus poderia atrasar indevidamente o andamento do processo — algo que a Justiça não pode permitir em nome de uma suposta proteção.
Os 15 dias que podem mudar tudo
A Amazon Prime Video e a Medialand têm 15 dias para apresentar sua defesa formal. Nesse período, é esperado que apresentem documentos que comprovem a base factual da série, inclusive trechos de processos criminais, depoimentos e registros históricos que sustentem a narrativa. A produtora já teria tomado medidas legais prévias para evitar esse tipo de ação — o que sugere que havia expectativa de resistência. Mas será que isso basta? Ainda não. O que está em jogo não é só a série. É o precedente: se a Justiça começar a suspender produções sempre que alguém se sentir ofendido, o jornalismo, o cinema e a literatura entrarão em colapso. A história não é um documento inalterável — é um relato, sempre sujeito a interpretação.Quem mais está envolvido nesse embate?
Além de Sandrão, o caso reacende o debate sobre o retrato de mulheres envolvidas em crimes violentos na mídia. Suzane von Richthofen virou ícone do mal, mas Sandrão — que foi vista como uma figura submissa, manipulada — agora é retratada como vilã. Ambas foram jovens, de classe média alta, e caíram em uma espiral de violência. A série, ao trazer à tona esse lado sombrio da sociedade brasileira, não está apenas contando um crime. Está mostrando como o sistema falha, como o poder da mídia molda a memória coletiva e como as pessoas que sobrevivem a esses episódios são condenadas uma segunda vez — pela narrativa alheia. A própria Sandrão, em declarações públicas, disse: "O tempo em que estive com ela, fui feliz". Essa frase, simples e triste, resume o paradoxo: ela foi parte de um pesadelo, mas também de um vínculo humano. E isso, talvez, seja o que a série não consegue — e talvez não deva — capturar.
O que vem a seguir?
A audiência de conciliação será agendada após a resposta dos réus — e, se as partes não chegarem a um acordo, o processo seguirá para o mérito. Isso pode levar meses, talvez anos. Enquanto isso, 'Tremembé' continua no ar. A segunda temporada já está em desenvolvimento. E a cada episódio assistido, a dor de Sandrão se torna mais visível — e mais difícil de ignorar. Mas a Justiça não pode escolher entre a verdade histórica e a verdade emocional. Só pode escolher entre o direito de contar e o direito de ser calado. Neste momento, escolheu o primeiro.Frequently Asked Questions
Por que a Justiça negou o pedido de retirada da série, mesmo com o pedido de R$ 3 milhões?
A juíza entendeu que, embora Sandrão tenha sofrido danos morais, a suspensão imediata da série seria uma censura prévia, violando o direito à liberdade de expressão garantido pela Constituição. Para bloquear uma obra, é necessário comprovar dano irreparável e violação clara de direitos — algo que ainda não foi apresentado. O pedido de indenização permanece em tramitação, mas a exibição da série não pode ser interrompida sem julgamento de mérito.
A série 'Tremembé' é fiel aos fatos reais?
A produção afirma ser inspirada em fatos reais, mas não é um documentário. A série usa liberdade artística para dramatizar eventos, como fazem muitas produções de true crime. Sandrão contesta que a retrata como mandante do crime, enquanto os autos criminais a classificam como partícipe secundária. A Justiça não avaliou ainda a precisão histórica — apenas se a suspensão era urgente. A verdade factual será discutida no mérito do processo.
O que acontece se a audiência de conciliação falhar?
Se não houver acordo, o processo seguirá para a fase de instrução, com produção de provas, testemunhas e perícias. Sandrão poderá manter o pedido de indenização, e a produtora poderá se defender com documentos históricos, depoimentos e registros judiciais. A decisão final pode levar de 12 a 24 meses. A série não será retirada durante esse tempo, a menos que uma nova medida judicial seja pedida e aceita.
Como a série impacta outras pessoas envolvidas no caso Richthofen?
Além de Sandrão, familiares das vítimas e outros envolvidos no crime também podem se sentir retratados. A produção não foi autorizada por ninguém, e a maioria dos envolvidos não participou da pesquisa. Isso levanta um debate ético: até onde a arte pode ir ao retratar traumas reais? A Justiça não regulamenta isso — mas a sociedade, sim. A pressão pública pode influenciar futuras decisões de produção, mesmo que não haja condenação legal.
Por que a segunda temporada já foi renovada se há um processo em andamento?
As plataformas de streaming renovam produções com base em audiência e engajamento, não em riscos jurídicos. A Amazon sabe que o processo pode durar anos — e que a série já gerou grande visibilidade. A decisão judicial não bloqueou a exibição, então a produção segue normalmente. A renovação é um sinal de confiança na capacidade da produtora de defender a obra legalmente, mesmo que o debate moral continue.
Existe algum precedente no Brasil de série suspensa por causa de ação judicial?
Sim. Em 2021, a série 'A Vida de um Ladrão' foi temporariamente retirada da Netflix após ação de um ex-policial que se sentiu retratado de forma negativa. Mas a suspensão foi reversível e durou apenas dias, até que a produtora apresentou provas de que a personagem era fictícia. Nenhum caso de true crime no Brasil teve uma obra inteira proibida por decisão judicial. O precedente aqui é que a liberdade de expressão prevalece — até que se prove dano real e irreversível.
Escreva um comentário